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terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

A ultima carta

Esta é, definitivamente, minha última carta. Os fatos ocorridos nas últimas semanas me forçaram a tomar esta decisão, que no momento vejo como a maior coerente. Quando a conheci, nunca pensei que as coisas tomariam tal rumo. Eu estava nas trevas, num abismo que parecia eterno e ultrapassava as barreiras de meu ser. Naquele sábado, encontrei você, como poderia ter encontrado qualquer outra pessoa. Eu estava a ponto de dar um fim a mim mesmo, sentado nos bancos do fundo daquela igreja, quando você me interpelou com um rosto que, antes de piedade, pareceu-me ser de luz. Minha vida, então, começou a tomar um novo sentido.
Em minha casa, tudo estava no ponto mais absurdo. Meus pais viviam brigando dia e noite, e não se importavam mais comigo e com meus irmãos. Eu não compreendia essa situação e, por isso, lutava desesperadamente para ficar em casa o menor tempo possível. Saía de manhã e só voltava a altas horas da madrugada, quase invariavelmente bêbado. Muitas vezes_ hoje já não mais sinto vergonha de contar_ fui pego na rua por toda madrugada. Bebia , brigava, andava com que, quando pouco, poderia chamá-los de neuróticos, sádicos, violentos.
Também fui, talvez você não soubesse um viciado. Um dia um “amigo”apareceu com tóxicos e eu, por pura ignorância e falta de amor à vida, os tomei e, pior, continuei a fazê-lo. Estava ficando fora de mim mesmo; a cada dia que passava eu mi tornava um pouco mais louco, um pouco mais assassino, um pouco mais infeliz.
Um dia, porém, durante um baile em casa de amigos, encontrei uma grota que muito me chamou atenção: Mônica. Não sei, realmente, o que me levou a ela. Penso, hoje, que o meu caráter abalado foi dominado pelo meu simples e óbvio instinto físico. Ela era atraente, em quase todos os sentidos. Não foi muito difícil chegar-me a ela, pois meu poder aquisitivo sempre fora, até então, a armar irresistível que eu usava para persuadir as pessoas.
Em pouco tempo começamos nosso romance. Tínhamos um contato frio e muitas vezes estranho. Eu resumia meu amor em dar-lhe presentes, em satisfazer-lhe as vontades e, mesmo assim, julgava gostar dela. Ela, porém, era incompreensível. Muito embora eu tivesse mudado, não bebendo tanto e procurando fugir dos meus “amigos” mais perigosos, ela não me ajudava, não apoiava, não dizia nada.
Assim aos poucos, nosso relacionamento tornou-se perigosamente frio e sem sentido; nossos contatos pareciam cada vez mais comerciais, e nossa maior intimidade física nos prendia; a única coisa que aumentava entre nós era o interesse sensual, a busca desenfreada de libertação de instintos num jogo em que não havia vencedores.
Numa noite, entretanto, quando andava sem rumo pelas ruas de meu bairro, algo fatal veio a me acontecer. Vi Monica em um carro com outro rapaz, aos abraços, beijos e carícias. Entendi, então, o que acontecera: tinha sido usado, usurpado por uma pessoa que não tivera o menor sentimento para comigo. Naqueles últimos tempos, embora houvesse tanta frieza em nosso relacionamento, eu ainda julgava amá-la. Aquilo foi para mim o final.
Novamente comecei a me embebedar: e bêbado fui à casa de Mônica e a destratei, chamando-a de miserável, vagabunda, mesquinha. Depois. Saí correndo desenfreadamente pelas ruas sob chuva. Teria morrido se algum carro tivesse cruzado meu caminho.
A partir de então, minha vida voltou praticamente à estaca zero. Não me conformava com aquilo que acontecera; agora eu brigava também em casa, chegando ao ponto de querer espancar meu próprio pai, quando, bêbado, discutia com ele.
O restante acho que você já sabe bem. Aquele cruz que vi na porta, ao passar em frente, me fizera não sei porque, entrar. Sentei-me desconsolado e perdido, chorando, pensando na minha miserável sorte e xingando Deus por ter-me feito o mal; o Deus que para mim só existia quando surgiam coisas ruins. E você, em pé á minha frente, continuava a indagar.
Lembra-se? Você perguntou o que me atormentava, e eu lhe disse apenas que não me incomodas-se que não se preocupasse comigo. Mas você não me ouviu; ergueu-me do banco(a muito custo) e levou-me a um homem que, soube depois, tratava-se de um simples e humano sacerdote. Fiquei por ali, conversando com ele sem compreender como uma pessoa, que eu nunca vira antes, pudesse me ouvir e entender.
Depois, nas várias vezes que liguei a você, eu me sentia cada vez mais homem, mais ser humano. Vi que a sordidez que me cercava nunca me traria um bem, que o mundo estava errado, e eu não sabia. Eu amara desvairadamente uma pessoa, e você depois, friamente, revelou-me que eu amara a mim mesmo, de um modo indiscutível. Cada vez que eu a via, seus olhos me irradiavam uma paz que só os justos possuem; você me ensinava sempre mais.
Nunca hei de esquecer o dia em que você me explicou me convenceu da existência de Deus. Falou-me do Universo, do crescimento igual e belo das plantas, das flores, do incompreensível e admirável mistério da vida, da presença divina em todos os lugares. Eu senti, naquele dia, algo que me espreitava em cada esquina, em cada árvore, em cada ser que me fitava.
Naquela noite eu, que sempre me proclamara um ateu, rezei silenciosamente ao Deus que eu jamais quisera conhecer e pedi perdão do mais fundo de mim. Percebi sua presença ao meu lado de uma maneira tão indubitável que poderia ter tocado nele, se aquele misto de emoção e terror não me paralisasse. Senti alguém perto de mim a respirar e murmurar, um alguém eterno e supremo. Se eu pudesse pedir-lhe alguma coisa, pediria que esvaísse que aquela noite fosse eternamente se estendendo.
Comecei a entender o sentido da palavra “viver”. Eu já não compreendia o modo de viver daqueles que sempre se disseram meus “amigos”. Senti que era vazio, apático, egoísta, desinformado. Vi surgir para mim uma nova época, uma vida que sempre tive na mente como utopia, um sonho maluco e mentiroso. Você fez de mim uma pessoa que acreditava em si mesmo, que confiava naquilo que lhe havia sido dado. Eu percebi que já não me abatia facilmente, que enxergava nas pequenas coisas um pequeno toque de amor, que já não me enganava, mesmo que o quisesse.
Na verdade, eu nunca compreendera o sentido da palavra “ideal”. E repentinamente descobri que eu estava lutando por um. Você, num dado instante, me perguntou por que, então, eu tanto lutava. E me jogou na cara este meu próprio ideal. Nunca imaginei que tanto havia pelo que lutar que tantas criaturas vivem atormentadas, que tão hediondo se encontrava nosso mundo. Via escuridão a cobrir todo este planeta; você era uma chama que teimosamente lutava para iluminar, para dizer não.
A noite de vigília, em que resolvemos ajudar em caravana a todos os indigentes, os desamparados, selou em meu coração tudo aquilo que vinha sistematicamente florescendo. Em cada instante que parávamos o carro, a cada pessoa a quem dávamos um café quente ou um pedaço de pão, eu via um Cristo enorme que nascia do seu coração. Essas pessoas nos agradeciam com tanta sinceridade e felicidade que me senti o homem mais realizado da terra. E aquele homem velho, cheirando a aguardente, depois de receber seu pedaço de pão pegou na minha mão e disse: “Tá vendo, meu filho? Este aqui é o corpo de Deus. É Jesus que veio com você para me alimentar. Como foi bom você ter vindo, meu filho. Como foi bom! Eu chorei. As lágrimas corriam de meus olhos sem nenhuma censura; não sei se de felicidade ou de dor. Meu corpo parecia entorpecido e outra vez percebi a mão de Deus em meu ombro, os olhos de Deus a me fitar através daquele mendigo. Eu já não era mais o de antes.
Desta maneira, não sei se por agradecimento ou emoção, comecei a desviar minha atenção para você. O meu mundo novo, minha vida alegre e saltitante, o sentimento de doação e sua presença começaram a me levar em sua direção. Acho que o fato de ter sido você a pessoa que me levantou, que me mostrou o caminho, que infundiu em mim aquele sentido da vida que cristo quis transmitir a todos nós, foi que jogou-me em sua direção. E eu comecei a aproximar-me de você, a ver em você algo que não percebera em outras garotas.
Nas cartas que lhe escrevi, tentei mostrar-lhe o quanto você valia para mim. Penso, porém, que seria melhor se não o tivesse feito. O que havia em mim já se tornava grande demais para que você pudesse compreender. Eu queria dar tudo de mim, tudo daquele muito que eu tinha. Entretanto, você não estava em condições de receber, não podia receber.
O dia em que você me telefonou e comunicou quase que laconicamente que gostava de outra pessoa, eu sinceramente pensei que ia arrebentar. Senti o chão faltar sob meus pés, uma enorme pedra ser projetada sobre minha cabeça.
Via-me novamente nas trevas e experimentei, por algum tempo, um lugar ao qual não desejava voltar, por nada deste mundo.
Mas, depois, lembrei-me de algumas anotações que fiz durante minha travessia de lá para cá e encontrei ovas forças para recomeçar. Na verdade, hoje sei que, o fato de se gostar de uma pessoa não é algo que sempre depende de nós mesmos, de nossa magnânima vontade. É uma coisa profundamente complexa e aleatória, ás vezes, com um sentido absurdo. Jamais poderei culpar você pelo fato de não gostar de mim do modo que eu queria. Aliás, você mesma me ensinou isto. As coisas na vida não são como desejamos, mas como se nos apresentam. A grande aventura de nossa existência não teria sentido se assim não fosse.
Escrevo desta forma, apenas para não deixar em branco a minha ausência. Sabia que estou muito bem, que o motivo de não mais aparecer no movimento é não só a minha vontade de não criar tensões para você e o Eduardo, mas também o fato de eu já estar ligado á turma daqui da minha paróquia, que precisa muito de mim. Jamais esquecerei do que você fez por mim; do homem que em mim nasceu. Nunca mais voltarei a ser o que era.
Por fim, peço que não perca o sono por minha causa. Eu já superei a má fase; contei muito com o que você mesma me disse. Desejo a você a maior felicidade do mudo as maiores bênçãos de Deus. Que permaneça para sempre com você e o Eduardo a paz que somente ele pode dar.
Adeus. Um eterno abraço do Teleco.
Fim